A filha que nunca deu trabalho | Psicóloga Tamara Levy

A filha que nunca deu trabalho

Por Tamara Levy, psicóloga especializada em psicanálise e saúde mental feminina

Dentre as muitas formas de se criar e formar mulheres, existe um universo que nos é apresentado desde cedo — sim, falo como mulher cis — um mundo cor-de-rosa, com flores, delicadeza, paciência, serenidade, educação. Espera-se que sejamos amorosas, carinhosas, discretas… e, de preferência, silenciosas.

A gente aprende cedo a se comportar. A entender que alguns comportamentos não são bem-vindos. Quando falamos em punição, pode parecer que estamos falando só de castigo, palmada. Mas para as meninas, existe uma outra forma de punição, mais sutil — e talvez mais cruel.

Nos dizem que ninguém gosta de menina malcriada, briguenta, mandona. E “ninguém” é muita gente. É o mundo inteiro. E uma criança leva isso ao pé da letra. Se for desse jeito, o amor será tirado de você.

O que se aprende ali é que o amor é condicional. Que há condições muito específicas para merecê-lo.

O silêncio como elogio e punição

Dentre todos os comportamentos exigidos (que por si só dariam assunto para uma vida inteira), quero destacar um: o silêncio.

Meninas são ensinadas a não dar trabalho. Mas isso não significa que não trabalhem — significa que aprendem a trabalhar em silêncio, a cuidar em silêncio, a calar o que sentem, a silenciar o desejo.

O elogio “ela nunca me deu trabalho, sempre tão tranquila” tem muitas camadas. Talvez queira dizer: “ela aprendeu a não ultrapassar os limites que nos incomodam.” “Ela aprendeu a silenciar a tal ponto que nem suspeitamos que existe ali algo além do que já lhe oferecemos.”

Ela aprendeu a parecer satisfeita com pouco. A se moldar ao que esperam dela. A ser o que agrada — não o que é.

Como diria Freud, ela se molda enquanto objeto, não enquanto sujeito.

Ariel, Úrsula e a troca da voz por amor

Sempre que me deparo com esse tema, me vem à cabeça um trecho de um livro sobre saúde mental e gênero. Em determinado momento, a autora faz uma análise das princesas da Disney. A Ariel, por exemplo — uma sereia, princesa dos oceanos — chama atenção justamente por isso: pelo silêncio.

Ela escolhe abrir mão da própria voz em troca de um par de pernas, para ir atrás de um homem que mal conhece. Faz esse acordo com Úrsula, uma bruxa com um humor sarcástico que, aliás, muito me agrada. Úrsula diz a ela: “É das caladinhas que eles gostam. Basta ter um quadril, não precisa de voz.”

É calada que se arruma um boy, segundo a Úrsula. E, convenhamos: errada ela não está. Basta ver as condições impostas às mulheres para permanecerem em uma relação.

Amor condicional e desigualdade emocional

Afinal, o amor para nós é condicional. Mas o amor que é exigido das mulheres é o amor incondicional — aquele que tudo deve suportar. Porque, se não for dessa maneira, o abandono e a solidão estão sempre à espreita.

A responsabilização das mulheres, desde muito cedo, por toda a condição da permanência nas relações, as coloca numa posição vulnerável a qualquer tipo de proposta que apareça.

Por outro lado, o que é dado aos homens como condição de existência é justamente o amor incondicional, com a garantia de que podem utilizar todo o seu potencial de ser e desejar, explorar, experimentar, errar.

Não vou me aprofundar nesse ponto, mas, como uma breve exemplificação: o mundo masculino apresentado aos meninos se dá na vastidão de sua imaginação. Afinal, menino é assim mesmo, né?

Reflexões finais

Vou te deixar com um gostinho do que vem a partir daqui, sentiu, né? Me conta o que esse texto despertou em você.

Este texto se inspira nas reflexões do livro “Saúde Mental e Gênero”, da Valeska Zanello (super recomendo essa leitura), que traz uma análise sensível sobre como gênero e saúde mental se entrelaçam no nosso cotidiano e na formação do sujeito.

Também dialoga com Freud, especialmente com seus escritos que exploram como o silêncio e a voz marcam a construção da identidade feminina, mostrando que essas questões estão entrelaçadas com o inconsciente e as normas sociais.

É nessa tensão entre o silêncio imposto e o desejo de ser escutada que seguimos — com muitos desafios ainda pela frente.

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